Thursday, November 6

Mãozinhas coladas para sempre


O livro “Palavra por palavra”sugere que você escolha uma hora específica do dia para escrever. E que comece falando desenfreadamente sobre sua infância. Provavelmente porque já passou e você teria alguma coisa para contar sem precisar necessariamente estar preocupada com a criação. “São apenas histórias de sua infância” e você acaba escrevendo despreocupadamente.

Então, eis que, já tentando inciar esta tarefa, gostaria de começar pelo incidente que me ocorreu quando tinha uns 4 ou 5 anos. Naquele tempo, já nem consigo lembrar de cabeça a minha série. Minha mãe só costumava dizer, com certo orgulho, que jamais teria pago “Maternal” ou “Creche”, então fui direto para o que chamavam de “Jardim I”. Hoje eu não faço a menor ideia de como chamariam. O fato é que lembro muito bem do que aconteceu naquele dia porque estava só e precisava tomar uma grande decisão. Tinha uma espécie de bomba relógio nas mãos e não sabia como resolver. Esperei o momento certo e agi.

Nos anos 80 os chicletes não eram como estas gomas de mascar da atualidade (que não grudam no dente ou na parede). Na minha infância, eles colavam em qualquer coisa. Infelizmente, não lembro de como aquele doce foi parar na minha boca, mas brincava de massinha enquanto eliminava o açúcar rapidamente. 

Minha história salta daí para o chiclete em minhas mãos. Não lembro porque fiz isso. Sei, apenas, que tudo começou porque resolvi pegar no chiclete. Deve ter sido uma decisão da minha humilde idade, de pegar em coisas que estão na boca na mesma proporção que costumávamos colocar na boca as coisas que carregávamos nas mãos.

O fato é que o chiclete colou num de meus dedinhos e tentei eliminar sua aderência, usando outro dedinho. Este, por sua vez, também foi afixado no chiclete e quando abri a mão, havia uma linha de chiclete que ia de um dedinho a outro. Não obstante, lembro do meu primeiro pensamento inocente – talvez não com esta clareza de palavras: – “Mas não é possível que todos os meus dedos fiquem colados nesta joça!”. Eu ainda não sabia, mas estava vivenciando uma das minhas primeiras ótimas histórias contáveis até hoje.

A outra mão apareceu para ajudar, outros dedinhos entraram na história, as palmas – não sei como – e minhas unhas também. Pouco tempo depois, eu estava sem mãos, achando que nunca mais poderia usá-las novamente. O chiclete havia colado todos os meus dedinhos “para sempre”. Eu acho até que isso é culpa dessas histórias da Disney, com esse papo de “...e viveram felizes para sempre”. Vai ver é por isso que, apesar de gostar muito de “A Bela e a Fera” ou “O Rei Leão”, não pago pau para estes filmes na minha infância. Sou produto de outros... Mas isso é história para outro dia.

E de volta às mãos atadas na goma de mascar dos anos 80, aquelas que eram bem infelizes, eis que enfio os braços debaixo da mesinha onde outros 3 amigos brincavam despreocupados. Lembro que a sensação era igual a daqueles filmes em que acontece uma tragédia muito grande: todo o resto caminha em câmera lenta, o som desaparece, você às vezes escuta as batidas de um coração – neste caso, era um coraçãozinho de 4 ou 5 anos – e, por estar na escola, havia gritinhos de crianças brincando bem ao longe. A expressão perfeita para a situação era: “Mainha, o meu mundo caiu!”

Sei que parece divertido. É para ser. Mas na hora? Não foi não, viu? Eu estava bem desesperada! Minhas mãos estavam coladas “para sempre”. E eu tinha um dilema enorme para resolver: “Ahmeudeusdocéu, como é que vou contar para a minha professora?” 

Eu sabia que estava perto do horário de largar, então achei legal esperar pela minha mãe. Mas estava com tanto medo e o tempo parecia que não passava... E eu precisava tanto, mais tanto, dizer a alguém! A minha professora era tão legal, eu queria tanto contar a ela! Mas ao mesmo tempo, achei que ficaria tão decepcionada...

Eu era uma das melhores alunas da sala. Para ser bem sincera, eu era o xodó da professora. Lembro que, naquele tempo, ela não tinha filhos, e vivia dizendo que queria que seus filhos fossem bem parecidos comigo se tivesse um. Ela sempre me colocava para ser a primeira da fila, sempre me ajudava com o lanche e me deixava sentar junto quando não queria brincar com meus coleguinhas. Esta foi a minha primeira professora. Minha amada professora.

Então, tive uma ideia brilhante! Nestas turmas, sempre tem um aluno que chora em algum momento. E eu sabia disso. O curioso é ter esta consciência aos 4 ou 5 anos. Bem, enfim, eis que esperei o próximo coleguinha chorar e não demorou. Graças a Deus, foi da minha mesa mesmo. Aproveitei o embalo e coloquei a boca no berreiro. Chorei junto também! Olha que plano infalível!?

A professora acalmou os meninos que estava brigando por um pedaço estúpido de massa e se ajoelhou do meu lado perguntando o que estava acontecendo comigo. Eu estava aos prantos. Enquanto as lágrimas desciam, tirei as mãozinhas debaixo da mesa e mostrei o resultado de um chiclete dos anos 80 que me deixaria paralisada pelo resto da vida.

Primeiro, a professora tomou o maior susto de todos os tempos. Hahahahaha... Depois me levou para o tanque e jogou muito detergente enquanto esfregava uma palma da mão na outra sem parar. (Eu estava chorando ainda.) Sem muito resultado, ela sentou comigo nos degraus da entrada da sala, jogou um punhado de areia nas minhas mãos e esfregou um pouco mais. Quando minhas palmas se soltaram, finalmente, uma da outra, parei de chorar. Ainda havia goma de mascar entre os dedos, mas o “para sempre” havia, literalmente, caído por terra.

Lembro de ter visto minha mãe chegar... E de tê-la visto me olhar com uma carinha de pena... Talvez por não estar presente quando eu senti que precisei dela. Devo ter chorado novamente, não lembro. Mas agora estava aliviada. Minhas mãos estavam livres, minha professora estava me ajudando, minha mãe estava ali e tudo ficaria bem. 

Estou aqui pensando no que realmente me deixou assustada. Até pouco tempo atrás, não sei dizer se levava a possibilidade de não poder usar as mãos tão a sério assim. Quer dizer, era só isso mesmo? No mais fundo, penso que não. É como se fosse, mas também não é. O que acho é que não gosto de certas mudanças. Ou não gostava. Minhas mãozinhas eram tão lindas soltas, meus dedinhos eram tão bonitinhos, foi assim que eu havia sido até ali. Por que tinha que ser diferente, agora? Não era perder as mãos. Era talvez não ser mais do jeito que sempre foi... Era o risco! O risco de não ser tão bom. De... sentir muitas saudades e não poder voltar atrás.

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